Uma brecha na fiscalização dos terminais rodoviários facilita a expansão silenciosa dos “Piratas dos shoppings” — grupo de Santo Antônio do Descoberto (GO) responsável por uma série de furtos a joalherias em centros comerciais de todo o país. Como falsos peregrinos, os criminosos cruzam divisas interestaduais e driblam os controles legais. Autoridades policiais de ao menos seis estados mapearam a rota do bando, que embarca com identidades falsas ou não conferidas. Delegados e entidades ouvidos pela reportagem questionam a ausência de métodos eficazes de segurança nas viagens de longa distância. Na terceira reportagem da série Rota dourada do crime, o Correio revela os mecanismos da quadrilha para o deslocamento aos estados-alvo de ataques.
Diariamente, os terminais rodoviários brasileiros recebem, em média, 125 mil pessoas. Em 2024, foram feitas mais de 1,6 milhão de viagens e cerca de 40 milhões de passageiros embarcaram nos coletivos, segundo o Anuário Estatístico TRIIP 2024, da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT). Diante de tamanho movimento, o sistema de controle é falho: são embarques feitos sem checagem rigorosa de identidade e fiscalização em bagagens.
Os criminosos se misturam facilmente entre trabalhadores e turistas, explorando o teatro da normalidade dos terminais. De Santo Antônio do Descoberto, deslocam-se rumo às rodoviárias do Plano Piloto ou de Taguatinga. De lá, seguem aos estados-alvo. O levantamento da ANTT indica concentração de 51% da demanda nacional por viagens interestaduais aos estados de São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Paraná, o que inclui também destinos traçados pela quadrilha.
Fiscalização
No Brasil, 347 empresas estão habilitadas para o transporte regular rodoviário (veículos e terminais com características rodoviárias). O setor se modernizou e adaptou o sistema de aquisição de passagem de forma on-line, por meio de sites ou aplicativos. A praticidade é preferência de 86,7% dos passageiros, segundo a Pesquisa Perfil Empresarial da Confederação Nacional do Transporte (CNT). O motivo? Comparação de preços, pagamento seguro e emissão dos bilhetes eletrônicos, o que elimina a necessidade de deslocamento físico aos pontos de venda.
Mas é desse sistema legal que os piratas se aproveitam. Em várias ocorrências mapeadas pela polícia, os criminosos usaram documentos falsos para a compra. O Correio testou o procedimento pelo site oficial da Rodoviária Interestadual de Brasília. Depois de um pré-cadastro com e-mail e senha, foram solicitados dados pessoais, como nome, data de nascimento e documento, com opção de inserir CPF, RG ou “outro”. A equipe digitou um nome fictício e inseriu “12345” como número de documento. Pronto. Bilhete comprado. Apesar de um alerta ao consumidor sobre a necessidade de apresentar o documento no embarque, na prática o sistema apresenta lacunas.
Letícia Pineschi, conselheira da Associação Brasileira das Empresas de Transporte Terrestre de Passageiros (Abrati), explica que a identificação do passageiro é obrigatória no país e funciona como resguardo. “Estamos atentos a problemas, como o tráfico de pessoas e de drogas. Mas não só isso. O passageiro está sujeito a um acidente ou problemas menores, como extravio de bagagem. Em ambas as situações, ela precisa estar identificada”, alerta.
O problema é na hora da conferência. A conselheira da Abrati garante que os profissionais passam por treinamento básico para identificar a originalidade do documento, mas não passa de uma checagem visual. Torna-se fácil a apresentação de um RG com nome falso. “Não existe nenhum tipo de validador eletrônico, chip ou qualquer outra coisa. Tanto no rodoviário quanto no aéreo, esse controle é visual, o que é um problema”, descreve.
Drible
Luiz Felipe Santana Batista, um dos integrantes da quadrilha dos piratas, acumula uma extensa ficha criminal. De junho de 2020 a fevereiro de 2025, invadiu cinco joalherias nos estados do Pará, Santa Catarina, Maranhão e Rio de Janeiro, causando prejuízo superior a R$ 3 milhões. Em janeiro deste ano, depois de deixar um rombo financeiro em uma loja de São Luís (MA), foi preso pela Polícia Militar do Estado de Goiás (PMGO) após desembarcar na rodoviária de Taguatinga.
Para fazer a viagem, o criminoso usou RG falso com o nome de Danilo Ornelas Gaia. Além da identidade, também portava cartões de crédito com a identificação do mesmo homem. Segundo a ocorrência, ao descer do ônibus, ele entrou em um Fiat Uno que o aguardava e seguiu para Samambaia, onde foi preso.
O caso escancara como a falta de controle efetivo nos terminais facilita a circulação de criminosos. De acordo com o delegado Jean Algarves, titular da Delegacia de Roubos e Furtos de São Luís do Maranhão (DRF), a falta de centralização de informações por parte das empresas de ônibus dificulta as investigações. “Quando ocorre uma situação dessa (furto), procuramos cada uma das empresas na busca pela lista com os nomes dos passageiros. Ficamos com a esperança de encontrar algum (nome) verdadeiro, o que é raro”, frisa.
Além do uso de documento falso, o bando traça outras estratégias para evitar a cadeia. Uma delas foi detectada nas investigações conduzidas pelo delegado-titular da Delegacia de Repressão a Furtos e Roubos de Salvador (DRFR), Jean Fiuza. Segundo ele, os integrantes evitam embarcar no terminal da cidade onde cometeram os furtos. “Percebemos que, algumas vezes, eles se deslocam em transporte por aplicativo para outro município do estado e só lá compram a passagem de ônibus.”
Em Recife (PE), o padrão de registro de ocorrências por extravio de documentos chamou a atenção da polícia. Os investigadores descobriram que a quadrilha usava esse artifício para embarcar sem apresentar documento oficial. Pela norma da ANTT, em caso de perda, furto ou roubo, é permitido o embarque mediante a apresentação do boletim de ocorrência homologado, desde que emitido há menos de 30 dias.
Um morador de Santo Antônio do Descoberto denunciou à reportagem, sob condição de anonimato, que a quadrilha também usa de “batedores”, papel comumente atribuído ao tráfico de drogas, mas apossado pelo grupo goiano para garantir a chegada das joias furtadas. Os encarregados têm o papel de detectar qualquer fiscalização ou blitz policial no caminho. Geralmente, vão em um carro na frente do ônibus e atentos aos postos policiais.
Os delegados questionam as falhas na fiscalização dos passageiros e consideram que a melhoria desse método facilitaria a prisão imediata da quadrilha. Por outro lado, os funcionários do terminal responsáveis pela checagem dos documentos não dispõem de poder de polícia. Portanto, abordagens ou revistas em bagagens é atribuição estrita das forças de segurança. “Se contiver qualquer produto de crime na mala de uma pessoa, o motorista não tem o que fazer, porque ele não sabe dos itens na bagagem. Ele depende da fiscalização da polícia, que geralmente ocorre no trajeto”, enfatiza Letícia Pineschi, conselheira da Abrati.
Investimento em tecnologia de ponta na maior porta de entrada de passageiros é discutido entre entidades do setor e governo. A demanda por equipamentos como raio-x, por exemplo, é antiga. Em 2008, o então deputado André Vargas (PT/PR) apresentou um projeto de lei para a instalação obrigatória de detectores de metais nos pontos de acesso aos terminais rodoviários. A justificativa à época foi o ingresso de criminosos armados em transportes coletivos para o cometimento de assaltos.
A Pesquisa Perfil Empresarial da CNT identificou que os acidentes de trânsito são o principal fator de impacto financeiro e operacional às empresas do setor: foram 71,1% das ocorrências registradas no ano passado. Em seguida, aparecem os assaltos e furtos (24,4%). As depredações, embora representem 17,8% das notificações, somaram mais de 50 episódios em 2024. Enquanto a segurança embarca com atraso, os empresários se agarram a outros métodos coibidores, como o uso de câmeras nos ônibus, comprovado como efetivo por 37,9% dos entrevistados na pesquisa.
Fugitivos e com mandados de prisão em aberto, os “piratas dos shoppings” não apenas trapaceiam os procedimentos legais para viajar entre estados — agem com a certeza da impunidade. No sistema penal, furtar milhões em joias ou uma camiseta de loja de departamento têm o mesmo enquadramento: furto simples, de 1 a 4 anos de reclusão; ou qualificado, de 2 a 8 anos, além de multa.
O desafio das polícias civis é indiciar a quadrilha como organização criminosa, o que eleva a pena para até 10 anos. Mas a responsabilização é complexa: o grupo se desloca rapidamente entre os estados, usa documentos falsos e se reveza nos furtos, o que dilui rastros e embaralha as investigações.
Na próxima reportagem, o Correio vai mostrar como funciona a fiscalização em torno de pedras preciosas e do ouro, o trabalho da Receita Federal e da Polícia Federal, e as dificuldades para rastrear os produtos furtados.
Por Por Brasília
Fonte Correio Braziliense
Foto: Ed Alves CB/DA Press
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