Doenças raras: famílias desabafam sobre falhas nas políticas públicas

Noah Adealdo de Freitas Silva, que hoje tem 4 anos, não recebeu aquele primeiro carinho característico da mãe para o filho logo após o nascimento. A criança nasceu com uma doença rara chamada epidermólise bolhosa, que fragiliza a pele e as mucosas, tornando-as suscetíveis a feridas quando há contato. A mãe recebê-lo com afagos seria um risco para o bebê.

“A pele dele é extremamente frágil, tanto na parte externa quanto interna. Podem dar bolhas espontâneas no olho, no ouvido, no nariz, na boca e no esôfago. Se a doença não é controlada, ele pode ficar cego, surdo, mudo e perder a capacidade de andar”, explica a mãe da criança, Anne Priscila de Freitas Silva, de 40 anos.

As doenças raras reúnem um grupo de cerca de 7 mil enfermidades, segundo o Panorama para Doenças Raras 2024 da revista científica The Lancet. São chamadas de raras porque afetam um número relativamente pequeno de pessoas em comparação com as doenças mais comuns. No entanto, quando avaliados como um único grupo, os pacientes raros podem alcançar 300 milhões de pessoas. No Brasil, a estimativa é que 5% da população tem alguma doença rara, o equivalente a 10,1 milhões de pessoas.

Imagem colorida de arte com informações sobre doenças raras

 

Mães, especialistas em saúde e presidentes de associações relatam dificuldades no diagnóstico e acesso a medicamentos e a tratamentos complementares para os pacientes com doenças raras. A carência de políticas sociais que possam auxiliar as famílias com pacientes com doenças raras também é uma queixa.

Professora de Educação Física, Tamiris Braz, de 37 anos, é mãe da Beatriz, de 4. A menina foi diagnosticada com a síndrome de Rett, doença neurológica que é marcada por uma regressão no desenvolvimento neurológico que se inicia entre os seis e os 24 meses de vida.

A mãe conta que a filha está na fila de atendimento do Sistema Único de Saúde (SUS) desde maio de 2024, quando foi diagnosticada. Beatriz faz acompanhamento com fisioterapeuta, fonoaudióloga e nutricionista graças à Casa de Maria, instituição beneficente de Belo Horizonte.

“Depois que recebemos o diagnóstico, passei a precisar trabalhar mais. Não é só medicação, é alimentação, combustível para levar aos atendimentos, fraldas… Tenho que conciliar meu tempo para suprir nossas necessidades financeiras e os tratamentos dela”, lista a mãe.

5 imagensJosiane Eusébio e o filho Benjamin Natanael, diagnosticado com epidermólise bolhosaMarina Alves de Noronha e o filho AndréA filha de Marcelo Aro, Maria, tem diagnóstico de Cornélia de LangeBeatriz foi diagnosticada no ano passado com síndrome de RettFechar modal.1 de 5

Anne Priscila e o filho Noah, diagnosticado com epidermólise bolhosa

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Josiane Eusébio e o filho Benjamin Natanael, diagnosticado com epidermólise bolhosa

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Marina Alves de Noronha e o filho André

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A filha de Marcelo Aro, Maria, tem diagnóstico de Cornélia de Lange

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Beatriz foi diagnosticada no ano passado com síndrome de Rett

Arquivo Pessoal

 

Diagnóstico é o primeiro desafio

A presidente da Associação Maria Vitoria de Doenças Raras (Amavi Raras), Lauda Santos, sabe bem como é o drama das famílias com pacientes raros. A filha dela, Laís Vargas, faleceu em 2016, aos 27 anos. Laís tinha artrite reumatoide juvenil (ARJ), e seu quadro delicado de saúde foi agravado por conta de outra doença. Por anos, Lauda lutou pela saúde da filha e, atualmente, ajuda famílias em circunstâncias semelhantes às que ela enfrentou.

“Precisamos de políticas de Estado porque as de governo mudam a cada gestão. Isso causa retrocessos. Nos últimos 10 anos, avançamos, mas ainda há muito por conquistar. Precisamos rever a Portaria 199, para garantir que o Ministério da Saúde cumpra sua parte na entrega de medicamentos e que estados e municípios passem a realizar a triagem neonatal de 50 doenças tratáveis”, aponta.

A triagem neonatal é o famoso “teste do pezinho”, exame realizado gratuitamente pelo SUS. Em 2021, foi aprovada uma lei que amplia para até 50 o número de doenças rastreadas pelo teste. No entanto, o mais comum é a oferta do mapeamento de até sete doenças.

O médico geneticista e diretor da Casa dos Raros, Roberto Giugliani, destaca a importância do rastreamento neonatal. “Para inúmeras doenças raras, o sucesso do tratamento depende de ele ser iniciado o quanto antes, até mesmo que os sintomas se manifestem. Por essa razão, muitas doenças raras estão incluídas no ‘teste do pezinho’, para que o diagnóstico precoce permita evitar sequelas irreversíveis”, comenta.

Marcelo Aro elege o diagnóstico como o maior problema relacionado às doenças raras. A primogênita dele, Maria, de 12 anos, possui síndrome de Cornelia de Lange (CdLS), uma enfermidade que afeta o desenvolvimento físico, cognitivo e comportamental. Aro, que também é político, fundou, em 2019, a Casa de Maria, para ajudar famílias de pacientes com doenças raras.

“Muitas famílias sequer conseguem um diagnóstico. E, sem diagnóstico, qual tratamento pode ser oferecido para a criança? Quando falamos que 30% das crianças com doenças raras no Brasil morrem antes dos 5 anos de idade, isso é um fato. Por que elas morrem? Porque falta política pública. Falta diagnóstico precoce. Sem diagnóstico, vai faltar medicação, tratamento, cirurgia, vai faltar tudo”, alerta.

A história de André Alves Noronha, de 15 anos, ilustra o desafio do diagnóstico. A primeira hipótese foi de atrofia muscular espinhal (AME). O último entendimento é de polineuropatia periférica accional, um conjunto de síndromes. A definição do problema que o afeta depende, no entanto, de um exame chamado exoma, ainda não realizado.

O procedimento foi solicitado à Amil, plano que atende à família, mas a liberação ainda depende de exigências burocráticas. Marina Alves Noronha, de 44 anos, mãe de André, explicou à reportagem que a família está providenciando o documento exigido. André depende de uma cadeira de rodas para se locomover e respira com a ajuda de uma máscara de oxigênio. Os movimentos dos membros superiores são limitados.

“Os médicos da atenção primária precisam ser mais preparados para a investigação de doenças raras. Com esse conhecimento, durante a gestação ou após o pós-parto, é possível encontrar metódos de tratamento mais avançados”, aponta Marina.

Acesso a tratamentos ainda é falho 

A dificuldade das famílias para conseguir os tratamentos e terapias que auxiliam na qualidade de vida dos pacientes raros também expõe as falhas das políticas públicas. Maria Teresinha Cardoso, médica especialista em genética, diz que os profissionais da rede devem estar mais preparados para atender crianças com doenças raras.

“Tem pacientes que conseguem tratamento acessíveis bem caros pelo SUS, mas isso é para apenas 5% das doenças genéticas raras. A grande maioria não tem tratamento algum, mesmo que seja de suporte. Então é realmente angustiante para nós estar diante de pacientes que a gente não consegue medicações e terapias adequadas”, desabafa.

3 imagensO BPC de Benjamin só foi alcançado por via judicial, após duas negativasO caso de Noah ilustra a dificuldade de acesso ao tratamento adequadoFechar modal.1 de 3

André Alves ainda não teve um diagnóstico fechado

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O BPC de Benjamin só foi alcançado por via judicial, após duas negativas

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O caso de Noah ilustra a dificuldade de acesso ao tratamento adequado

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Rotina de cuidados impacta vida das famílias

Anne, que você conheceu no início da reportagem, tinha uma carreira no mercado imobiliário. Os cuidados com Noah a obrigaram a interromper a trajetória. Ela se vira com eventos em prol do filho para complementar a renda da família, que ainda tem outras duas crianças. Noah recebe apenas um salário mínimo oriundo do benefício de prestação continuada (BPC).

“Vivo de doações para bazar. E graças a Deus, estou cercada de pessoas muito criativas. Então, a gente faz o arraial do Noah todos os anos, fazemos uma feijoada, galinhada. Graças a Deus, conhecemos muitas pessoas de coração bom”, ressalta.

Josiane Euzébio da Silva Nascimento, de 40 anos, mãe de Benjamin Natanael, de 5 anos, também sente o quanto uma doença rara impacta no orçamento. “O gasto é muito grande, a gente precisa que as pessoas que representam o Estado tenha essa sensibilidade, essa visão, pois é muito difícil as famílias assumirem esses cuidados sozinhas”, aponta.

Josiane vive para cuidar de Benjamin, que tem epidermólise bolhosa. A rotina de cuidados com a criança obrigaram a mãe a deixar de trabalhar, mas ela não recebe remuneração alguma do Estado. O BPC do menino só foi alcançado por via judicial, após duas negativas.

O caso de Noah é citado pela mãe, Anne, como um exemplo de dificuldade no acesso às complexas necessidades de tratamento. “Ainda falta muita coisa. A gente não tem oftalmologista, fisioterapeuta, endocrinologista, psicólogo, psiquiatra. Todos esses profissionais foram pedidos na regulação do convênio desde o dia que ele nasceu”, reclama.

Judicialização, muitaz vezes, é a única saída

A advogada e diretora jurídica da Casa Hunter e da Casa dos Raros, Andreia Bessa, explica que os tratamentos para doenças raras giram na casa dos milhões porque, muitas vezes, são desenvolvidos de maneira muito específica, para um grupo reduzido de pessoas. Ela considera, entretanto, que o Estado precisa garantir o acesso a todos. “A Constituição Federal diz que ‘todos têm direito à saúde’. Mas o que é esse direito? Ele é integral? Ele é sem nenhuma barreira? Quais seriam os limites desse direito?”.

“O governo espera ser demandado e deveria ser mais proativo. É aí que acontece a judicialização, o paciente raro não tem tempo a esperar”, defende Andreia.

Os casos de pessoas com doenças raras que têm de recorrer à Justiça para solicitar medicamentos e tratamentos engrossam as estatísticas que sufocam os tribunais. No Brasil, a cada 47 segundos, em média, a Justiça recebe um novo processo relacionado a questões de saúde.

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A vice-presidente da Comissão dos Direitos da Criança e do Adolescente da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Goiás (OAB-GO), Danielle Nava faz coro às palavras de Bessa sobre judicialização, mas também chama atenção para a necessidade de se planejar o atendimento aos pacientes raros.

“É importante que políticas públicas incluam investimento em pesquisas dentro das universidades, que sejam desenvolvidos tratamentos e medicações aqui, em vez de ficarmos só importando. É preciso que sejamos produtores para desenvolver a concorrência entre as empresas no Brasil e tenhamos mais opções de preço”, completa.

Todas histórias contadas deixam claro que o Estado precisa avançar para abraçar as necessidades das crianças com doenças raras, bem como as famílias que delas cuidam.

Respostas

A Secretaria de Saúde do Distrito Federal afirmou ao Metrópoles, em nota, que possui centros de referência para doenças raras com equipe multidisciplinar em dois hospitais do DF. A ordem dos atendimentos é estabelecida pela central de regulamentação.

O Ministério da Saúde afirmou, em nota, que o teste do pezinho ampliado vem sendo implementado de forma progressiva nas unidades da federação. A ampliação é feita de acordo com iniciativas legislativas locais.

Como ajudar

Anne e Josiane integram a Associação de Parentes, Amigos e Pessoas Portadoras de Epidermólise Bolhosa Congênita (Appeb), onde aprendem e compartilham informações com outros familiares de crianças com a doença. O contato para doações é o perfil no Instagram @appeb_df. Doações para Noah podem ser feitas por contato direto com Anne pelo telefone (61) 99567-3821.

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